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  • Foto do escritorWesley Bertolai

. Medo da chuva

. Medo da chuva


O medo da chuva é além do ser-humano, e assim como o Raul perdeu o seu medo vendo as pedras que choram sozinhas no mesmo lugar; eu perdi o meu, vendo os animais que em família tentavam se salvar.

Não dá pra dizer que realmente é a chuva que causa medo em certas pessoas, mas sim a sua ameaça. O medo só existe enquanto ela não chega, pois quem tem esse frio na barriga sabe, assim que as gotas começam a cair, o coração acalma e conseguimos apreciar. De qualquer forma, eu aprendi, embora hoje não tenha mais com a mesma força, herdei de vó para mãe, de mãe para filho tal pressentimento, que hoje sabemos se chamar ansiedade, mas que por tanto tempo, apenas falamos “nervosismo”.

A mãe de minha mãe, sempre teve muito medo da chuva, algo realmente próximo de desespero, a minha mãe também, mas minha mãe soube refletir sobre o assunto, ela sempre me disse que seu medo começou quando era criança e precisava se esconder embaixo da mesa nos temporais, pois o risco de telhas desabarem sobre a casa era enorme. Além disso, em enchentes, minha mãe já perdeu muita coisa, e “eu também”, por isso sempre me perguntei, será que esse medo é genético ou trauma de infância? De qualquer forma, ambos têm probabilidade. Quando eu era criança muitas enchentes “lavaram” minha casa, perdemos muita coisa, principalmente estante da sala e sofá. Para a estante, meu pai como pedreiro, foi esperto e achou a solução, construiu uma de tijolos que tá lá até hoje, mais de 20 anos! O sofá, claro, por muito tempo (anos talvez, não tenho certeza) foi improvisado com algumas caixas e colchão.

Seja por genética ou não, eu vivenciei todos esses desesperos de minha mãe quando pequeno, e até então naquela época não parecia ser ruim pra mim, não tinha noção nenhuma sobre o quão difícil seria conquistar móveis novos. De qualquer forma, já era uma premissa pra tal consciência de classe nascer. Enfim, tais traumas só realmente começaram a fazer sentido depois de crescido, depois de começar a perceber que o mesmo “frio na barriga” antes de uma tempestade chegar, me foi herdado. Mas, não é simples, é como se fosse natural, aliás. E realmente só comecei a refletir sobre isso nos anos de 2019 em diante, enquanto estive morando sozinho numa casa que possivelmente poderia encher também em dias de muita chuva.

Eu estava morando em São Vicente, na baixada, uma cidade que é conhecida por suas enchentes. Mas, sempre disse pra minha mãe que “minha rua é mais alta, não corre esse risco”. É claro que omiti a situação pra ela, só fui dizer a verdade algum tempo depois que saí daquela casa. Aliás, era até difícil mentir, era uma casa de fundo, tipo uma vila no fundo de um beco. E no meio desse corredor pra chegar até lá, tinha uma enorme rampa de concreto, ou seja, uma “gambiarra” para fazer a água da rua voltar para trás.

De qualquer forma, eu morava junto com meu gato, o Monge. Eu dava uma certa liberdade pra ele, principalmente por causa do tema dessa prosa. Por mais que eu ficasse preocupado com ele em dias de chuva do qual eu não estivesse em casa, sempre deixava a janela aberta, pra ele poder sair caso a casa enchesse de vez e evitando que ele morresse ou se desesperasse. Meio ingênua e boba minha atitude talvez, mas enfim, era o que eu pensava na época. De qualquer forma, hoje ele está muito bem e gosta bastante de chuva.

Minha preocupação com meu gato, realmente me deixava ansioso durante os dias, pois trabalhando longe de casa, eu não conseguia parar de pensar em como o Monge estaria lidando com fortes chuvas. Isso me fez refletir em entender os mesmos sentimentos de minha mãe, percebi que independente dos motivos iniciais para o seu medo de chuva, ele se agregava ao dobro, tendo que se preocupar também com a vida e saúde de seus filhos em tal situação ruim. De qualquer forma, aprendi desde criança a colocar tabuas com bordas emborrachadas na porta de casa.

Por mais estranho que pareça, também falarei sobre baratas, isso mesmo, os bichos. Pois como disse no início, foram os animais que me fizeram perder o medo da chuva. E as baratas, nunca gostei delas, pois dizem que existem dois tipos de seres-humanos, os que não se importam com baratas, e os que não gostam dela. Enfim, hoje mudei minha percepção sobre elas. E foi exatamente, num dia de muita chuva, mas muita chuva mesmo! Minha casa já estava quase enchendo, do lado de fora inclusive, já estava cheio, com a água quase transpassando a porta. Minha casa não encheu, mas a casa (ou um lar) de um grupo (ou uma família) de baratas, com certeza foi todo alagado! Pois enquanto eu tentava afastar a água para longe da minha porta, eu via no muro, bem de frente a minha casa, um grupo de pelo menos umas 10 baratas juntas, todas grudadas uma na outra, tentando se proteger da chuva, toda juntas em um único e determinado ponto da parede onde ainda parecia seguro.

Naquele momento, eu realmente refleti sobre o porquê daquelas baratas não terem entrado em minha casa para se esconder, mas aquela cena, não saiu da minha cabeça por muito tempo, pois aquilo obviamente reativou memórias de minha infância onde acordava de madrugada com minha mãe pedindo quase chorando pra mim e meu irmão ajudar meu pai a levantar os móveis do chão.

As baratas naquele dia, me fizeram refletir sobre a vida delas, e o quão difícil é viver num mundo onde você não é bem-vindo (é óbvio que aqui deixo uma reflexão sobre a classe pobre e periférica da sociedade, mas enfim, o assunto da prosa é outro agora). Mas também, além delas, outros bichos me ajudaram a  refletir sobre o assunto, e foi no mesmo ano desde ocorrido, cerca de alguns meses depois.

Ratos! Nunca tive muito medo deles, por mais que fosse normal em casa (antes de termos nosso primeiro gato) ter que lidar com a expulsão deles dentro de casa ou infelizmente com a morte deles. Enfim, esse outro ocorrido aconteceu comigo no ano de 2019, enquanto estava indo fazer a prova do ENEM. Neste dia, choveu muito! Mas muito mesmo, do tipo que realmente chegaria muito perto de entrar água em casa. Por isso, antes de sair de casa, eu realmente fiquei alguns minutos refletindo se realmente valeria a pena ou não deixar meu gato sozinho naquele temporal. Enfim, acabei arriscando, deixei a janela do quarto aberta, e saí em direção à prova, pois estava disposto a continuar na faculdade, já estava a praticamente 2 anos com a faculdade trancada por motivos financeiros, eu precisava muito de um desconto!

A escola que eu ia fazer a prova ficava no centro de São Vicente, não era tão longe de casa pois eu morava num bairro que beirava o centro, cerca de uns 15 minutos andando. Com meu guarda-chuva furado, enfrentei logo ao sair de casa, minha rua toda alagada, a água vinha praticamente no joelho, era impossível não passar pela água pra sair da minha rua, então peguei minha bota do trabalho, coloquei e ao sair do alagamento, me enxuguei com uma toalha e fiz a troca pelo tênis, pra não chegar todo encharcado na escola. Uma das coisas que mais me chateou naquele momento, nem foi ter molhado toda minha perna pra sair de casa, afinal, não era a primeira e única vez, mas ter visto no canto da rua um rato morto. Independente da situação, eu não gosto de ver animais mortos.

Enfim, quando eu já estava no centro da cidade, a chuva continuava forte, com enxurradas bruscas e velozes que levavam tudo que estivesse à sua frente. No meio de duas enxurradas, parados bem na esquina de uma praça, eu vi uma “família” de ratos, eram 3, e assim como as baratas alguns meses atrás, todos grudados um no outro, impossibilitados de saírem de onde estavam. Aquele momento, eu juro, passou como uma “cena de filme” em minha cabeça, e foi o ápice da minha reflexão sobre ter medo da chuva, algo que vinha “martelando” minha cabeça há meses.

Aqueles ratos desesperados, amedrontados sem ter escapatória, eu pensei em ajudar, mas não consegui pensar em nada rápido, pois já estava faltando muito pouco pra chegar atrasado na prova, e pra você que é brasileiro, já sabe o que significa se atrasar pro ENEM, né. Enfim, não pensei em nada, mas me auto sabotei dizendo que eles iriam ficar bem quando a chuva parasse, tinha certeza que iriam conseguir se safar, pois são espertos. Mas mesmo assim, era difícil não contextualizar aquele momento deles com o rato morto visto um pouco antes.

Naquele dia, eu cheguei em casa e já sem chuva, tomei um banho bem quente. No banho esfreguei bastante meus pés, assim como minha mãe me ensinou quando era pequeno, pois por ter pisado tanto na água da chuva, o risco de pegar alguma doença era forte. Naquele banho refleti, percebi. Não era medo da leptospirose ou algo parecido, o medo sempre foi da chuva. Esse medo, ou essa ansiedade herdada, finalmente começou a ter uma explicação pra mim, e aos poucos, o tal frio na barriga foi sumindo e hoje é muito raro.

Não sei como foi para Raul, mas realmente perder o medo da chuva, é como se descobrisse o segredo da vida, e diferente das pedras que sonham sozinhas no mesmo lugar, o fardo de ser um animal e ter uma família, realmente intensifica muito mais a  preocupação. Porém, essa mesma preocupação familiar, intensifica mais ainda, a vontade de superar tal medo! Independente se foi uma herança genética ou cultural.


Escrito em 2023.




























Fotografia do autor, São Paulo, 2024.



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